Publicarei, nessa semana, uma série de diálogos que tive com um de meus amigos jornalistas. Desempregado, mas freelancer de várias revistas, ele, um grande intelectual, e ateu, como gosta de frisar, traz sempre empolgado assuntos sobre quais podemos conversar pelo menos o dia todo, simplesmente porque, segundo ele, muitos há nesse mundo que jogam conversas fora, transformando nosso próprio universo em um lixo sem tamanho.
E ele tem razão.
Podemos encontrar a essência na música e antes nos próprios instrumentos. |
Hoje em meio a grandes jornalistas que discutem notícias
atuais, que reverberam acerca das operações da Policia Federal, dos escândalos
que hora e outra denunciam governadores, deputados, presidenciáveis, enfim, a
cúpula do Poder, encontrei um que pudesse discutir algo mais afunilador
comigo, ou seja, que em nossas conversas pudesse tangenciar a esses "dentes
de cachorro" e seus "rabos" que nunca se encontram...
É chato fazer parte de uma Imprensa na qual se fala o tempo
todo das mesmas coisas sem se quer observar o que está por trás de tudo, não
apenas das notícias, mas das pessoas, de suas intenções, além do próprio objeto
em que se referenciam... E, com esse grande amigo jornalista, posso discorrer
sobre tudo, até mesmo do que não se pode discutir...
Um dia, ele, assim
como sempre gosta de iniciar, o grande amigo me trouxe uma matéria que fazia a
respeito de um grande afinador de piano, solitário, que morava junto com sua
esposa, no entanto, não estava sempre com ela e sim com seus amores, os pianos.
E com toda simplicidade, o jornalista,
free lancer – meio pelo qual se trabalha sem prestar serviço a empresas
específicas, mas a pedido de donos de revistas – enfim, foi à casa deste
grande afinador e me revelou detalhes, como sempre o faz, quando se empolga (ou
que deve amar com fins lucrativos...) com um assunto deveras de interesse da
revista...
Lá, ao encontrar o afinador, tão simplório quanto ele,
sentiu-se à vontade, e com o passar das horas, iniciou o que ele chamou de
entrevista espiritual. Não por que os dois tinham qualquer afinidade religiosa,
muito menos meu caro amigo jornalista, que se julga ateu. Mas diante do que me
dissera, sentia, nas palavras do senhor de mais ou menos sessenta anos, uma
distância imensa entre seres normais que afinam pianos ou qualquer instrumento
daquele que sentia nas veias, na alma e no coração, não somente uma determinação
búdica, mas uma paz irrefreável no que
fazia...
“Meu amigo...” – dizia o jornalista, ao me contar, “sabia
que o velho nem mesmo sabia tocar piano? E aprendeu por si próprio?”... Foi um
dos primeiros pontos que salientara após a entrevista. “Cara, ele possui pianos
de gente do exterior, que sabia de seu trabalho de
afinação era um dos melhores da cidade!”..
Até aí, tudo bem. Mas quando me dissera que o velho tinha
uma paz tão profunda, uma simplicidade invejável, e ao mesmo tempo um zelo
oriental pelos instrumentos, fiquei mais atento ao que o jornalista traduzia do
velho.
Eu, enfim, estava pronto para dar o bote – transformar aquela
conversa em algo nutritivo à nossas almas, de modo que não tivéssemos que
adentrar no vulgarismo...
“Acho que ele é um neoplatônico “– disse eu... E sem saber o
que eu havia colocado, meu amigo indagara o que eu queria lhe dizer. Fui mais
profundo... “Nas pequenas coisas encontramos Deus, e acredito que ele (o
afinador) saiba disso”. “Na República platônica, parte-se do principio que o
individuo tenha vocação, ante de assumir seus afazeres, e isso, pode-se dizer,
é valioso em pessoas que ainda o fazem atualmente...”
Depois de atencioso ao que eu dissera, o jornalista não se
apegou muito em minhas palavras, mas sabia o que eu queria dizer. Para mim, já
teria ganho o dia, mesmo porque pessoas há em minha esfera amistosa que ainda
não gostam de ouvir algo parecido com filosofias, sejam elas teóricas,
práticas, antigas ou modernas...
E continuou, “Ele, antes, olhava para o piano, ficava
maravilhado com o instrumento – tudo isso antes de ser o que é. Um dia, vendeu seu carro, e em comum acordo
com a esposa, comprou o seu próprio instrumento de teclas... E enfim, pôde...
des-mon-tá-lo...!”
Fiquei abismado. Será que era uma tara antiga aos
instrumentos de teclas? Será que tudo começou na infância, quando quebrou seu
primeiro órgão e não soube remonta-lo?.. Claro que não. Segundo meu amigo, o
afinador precisava fazer aquilo para conhecer, reconhecer, voltar a
conhecer, e começar a entender como
funcionaria sua paixão – o piano.
“Aqui, me parece – eu disse – que Aristóteles tomou sua
alma, e de inicio, e o fez tentar entender, a partir do motor ou mesmo da
primeira partícula daquele instrumento, Deus”... Um sorriso me veio ao rosto e
ao dele também, pois estávamos chegando a algo mais palpável, mas ao mesmo
tempo, afunilador.
Mais na frente, suas palavras foram detalhistas em relação à
beleza com que o afinador fazia seu trabalho, na religião que se mostrava sem
dar as caras, falava do amor prático aos instrumentos clássicos com os quais
trabalhava, e na paz que transmitia ao vir pessoas felizes pelo que fazia.
Naquele dia, pensei: estou aqui, perto de um homem que não
acredita em Deus, pelo menos a que se refere as religiões atuais, de um
pessoa que tenta, de todos os modos, encontrar sentido na vida no trabalho de
quem se mostra tão forte e ao mesmo tempo tão belo quanto qualquer sectarista
religioso que o mundo dele pode mostrar.
Naquele dia, percebi que não consigo mais sair de minha
esfera religiosa, aquela em que Deus está em todas as possibilidades, sejam
elas boas ou más, e me leva como um raio para o céu, de baixo para cima, ao
contrário dos raios comuns, e me faz tocar as vestes de um espaço que, a cada
dia, me faz entender que estou no caminho certo ao meu céu.
O afinador?
Ah, esse estará sempre em minha mente como mais
um real profissional ao qual Platão sempre sonhou na sua ideológica República
Nenhum comentário:
Postar um comentário