segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

O Jornalista e o Filósofo em "O Afinador de Pianos".

Publicarei, nessa semana, uma série de diálogos que tive com um de meus amigos jornalistas. Desempregado, mas freelancer de várias revistas, ele, um grande intelectual, e ateu, como gosta de frisar, traz sempre empolgado assuntos sobre quais podemos conversar pelo menos o dia todo, simplesmente porque, segundo ele, muitos há nesse mundo que jogam conversas fora, transformando nosso próprio universo em um lixo sem tamanho.

E ele tem razão.



Podemos encontrar a essência na música e antes nos próprios instrumentos.





Hoje em meio a grandes jornalistas que discutem notícias atuais, que reverberam acerca das operações da Policia Federal, dos escândalos que hora e outra denunciam governadores, deputados, presidenciáveis, enfim, a cúpula do Poder, encontrei um que pudesse discutir  algo mais afunilador comigo, ou seja, que em nossas conversas pudesse tangenciar a esses "dentes de cachorro" e seus "rabos" que nunca se encontram...

É chato fazer parte de uma Imprensa na qual se fala o tempo todo das mesmas coisas sem se quer observar o que está por trás de tudo, não apenas das notícias, mas das pessoas, de suas intenções, além do próprio objeto em que se referenciam... E, com esse grande amigo jornalista, posso discorrer sobre tudo, até mesmo do que não se pode discutir...

Um  dia, ele, assim como sempre gosta de iniciar, o grande amigo me trouxe uma matéria que fazia a respeito de um grande afinador de piano, solitário, que morava junto com sua esposa, no entanto, não estava sempre com ela e sim com seus amores, os pianos. E com toda simplicidade, o jornalista, free lancer – meio pelo qual se trabalha sem prestar serviço a empresas específicas, mas a pedido de donos de revistas – enfim, foi à casa deste grande afinador e me revelou detalhes, como sempre o faz, quando se empolga (ou que deve amar com fins lucrativos...) com um assunto deveras de interesse da revista...

Lá, ao encontrar o afinador, tão simplório quanto ele, sentiu-se à vontade, e com o passar das horas, iniciou o que ele chamou de entrevista espiritual. Não por que os dois tinham qualquer afinidade religiosa, muito menos meu caro amigo jornalista, que se julga ateu. Mas diante do que me dissera, sentia, nas palavras do senhor de mais ou menos sessenta anos, uma distância imensa entre seres normais que afinam pianos ou qualquer instrumento daquele que sentia nas veias, na alma e no coração, não somente uma determinação búdica, mas uma paz irrefreável  no que fazia...

“Meu amigo...” – dizia o jornalista, ao me contar, “sabia que o velho nem mesmo sabia tocar piano? E aprendeu por si próprio?”... Foi um dos primeiros pontos que salientara após a entrevista. “Cara, ele possui pianos de gente do exterior, que sabia de seu trabalho de afinação era um dos melhores da cidade!”..

Até aí, tudo bem. Mas quando me dissera que o velho tinha uma paz tão profunda, uma simplicidade invejável, e ao mesmo tempo um zelo oriental pelos instrumentos, fiquei mais atento ao que o jornalista traduzia do velho.

Eu, enfim, estava pronto para dar o bote – transformar aquela conversa em algo nutritivo à nossas almas, de modo que não tivéssemos que adentrar no vulgarismo...

“Acho que ele é um neoplatônico “– disse eu... E sem saber o que eu havia colocado, meu amigo indagara o que eu queria lhe dizer. Fui mais profundo... “Nas pequenas coisas encontramos Deus, e acredito que ele (o afinador) saiba disso”. “Na República platônica, parte-se do principio que o individuo tenha vocação, ante de assumir seus afazeres, e isso, pode-se dizer, é valioso em pessoas que ainda o fazem atualmente...”

Depois de atencioso ao que eu dissera, o jornalista não se apegou muito em minhas palavras, mas sabia o que eu queria dizer. Para mim, já teria ganho o dia, mesmo porque pessoas há em minha esfera amistosa que ainda não gostam de ouvir algo parecido com filosofias, sejam elas teóricas, práticas, antigas ou modernas...

E continuou, “Ele, antes, olhava para o piano, ficava maravilhado com o instrumento – tudo isso antes de ser o que é.  Um dia, vendeu seu carro, e em comum acordo com a esposa, comprou o seu próprio instrumento de teclas... E enfim, pôde... des-mon-tá-lo...!”

Fiquei abismado. Será que era uma tara antiga aos instrumentos de teclas? Será que tudo começou na infância, quando quebrou seu primeiro órgão e não soube remonta-lo?.. Claro que não. Segundo meu amigo, o afinador precisava fazer aquilo para conhecer, reconhecer, voltar a conhecer,  e começar a entender como funcionaria sua paixão – o piano.

“Aqui, me parece – eu disse – que Aristóteles tomou sua alma, e de inicio, e o fez tentar entender, a partir do motor ou mesmo da primeira partícula daquele instrumento, Deus”... Um sorriso me veio ao rosto e ao dele também, pois estávamos chegando a algo mais palpável, mas ao mesmo tempo, afunilador.

Mais na frente, suas palavras foram detalhistas em relação à beleza com que o afinador fazia seu trabalho, na religião que se mostrava sem dar as caras, falava do amor prático aos instrumentos clássicos com os quais trabalhava, e na paz que transmitia ao vir pessoas felizes pelo que fazia.

Naquele dia, pensei: estou aqui, perto de um homem que não acredita em Deus, pelo menos a que se refere as religiões atuais, de um pessoa que tenta, de todos os modos, encontrar sentido na vida no trabalho de quem se mostra tão forte e ao mesmo tempo tão belo quanto qualquer sectarista religioso que o mundo dele pode mostrar.

Naquele dia, percebi que não consigo mais sair de minha esfera religiosa, aquela em que Deus está em todas as possibilidades, sejam elas boas ou más, e me leva como um raio para o céu, de baixo para cima, ao contrário dos raios comuns, e me faz tocar as vestes de um espaço que, a cada dia, me faz entender que estou no caminho certo ao meu céu.

O afinador?
Ah, esse estará sempre em minha mente como mais um real profissional ao qual Platão sempre sonhou na sua ideológica República

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