sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

O Último Voo de Falcão (?)

Falcão preso. Momento raro.




... Falcão cresceu, e enlouqueceu a todos. Depois de rasgar redes de pano, saias de mulheres estendidas, correr com panos de chão na boca, a picá-los com a facilidade de um moedor de carne canino, Falcão me surpreendeu com sua energia que não parava de crescer. E como todo criador de cães em espaços reduzidos, pensei em adotar táticas tardias, mas válidas a partir de técnicas arcaicas... Ou seja, comecei a andar de cajado!

Foi a pior ideia de minha vida, na criação de cães. Acho que nem mesmo meu pai, que detestava-os, não incriminava tandos os bichos, os quais só estavam fazendo o seu "trabalho"...A liberdade dele era total, por fim, tomando conta das situações, até mesmo na hora de comer, sair, fazer suas necessidades, de modo que as coisas me pareciam fora do controle...

Mas não é bem assim. Comecei a lidar com um aspecto formal, instintivo, como um cão também, a raciocinar como ele, e vi que ele precisa de ajuda. Precisava de carinho, de colo, de amor. E comecei a me aproximar dele, como um pastor do pastor. Ele assim me reconheceu como seu amo e senhor -- o que significa isso?

Tudo que ele fazia, tudo que ele pensava em fazer, olhava para mim, com sua calda louca a bater nas muretas, nas paredes, a sorrir energicamente para soltá-lo, para correr com ele, sair, e viver a vida que ele "pediu a Deus". Não era bem assim....

As coisas começaram a sair do controle em minha vida pessoal e conjugal, e minha esposa começou a acreditar que a relação entre mim e ele estava ficando mais estreita, enquanto a minha e a dela... Bem, o que quero dizer é que, ainda que um casal não tenha aquela afinidade toda, um dos dois, por mais bobo que seja, sente a vontade reclamar com alguém, e ela não tinha mais ninguém, depois que o cachorro começou a ser o número um, e ela o número três, porque meu filho era o dois...

Falcão se tornou um dos maiores cachorros que já vi da raça pastor; porém, sua idade mental não acompanhava-o, e voltava com suas brincadeiras, com sua alegria de dar medo nas crianças, nos adultos, nas pessoas de fora, quando eu passeava com ele (sem coleira!); e por isso, hoje, me arrependo. Não devia ter dado a liberdade que dei a ele.

Muitos me perguntavam, "qual a idade dele? dez, quinze...", e quando eu respondia sete ou oito meses, ficavam assombrados. Outros me questionavam como eu criava aquele cachorro, daquele tamanho, solto, sem medo.. "Eu acho que ele não faz mal a ninguém, ainda é muito criança, mas quando ficar mais velho, o coloco preso" -- foi outro erro grasso.

Depois de algum tempo, com seus oito meses, parecendo um urso, Falcão fez sua "última" retaliação (literal). Pela manhã, eu o soltava e na parte da tarde também; pela manhã, fora de casa -- e às vezes, de noite idem -- mas de tarde, era dentro do quintal, onde havia varais com roupas, jardins com plantas insipientes, cujos criadores -- não sei como, -- nunca levaram em consideração o perigo a correr com o "detonador" solto, e foi aí, nessa dubiedade de culpados -- eu, com o dog, e eles, pelo relaxamento natural, que aconteceu o pior.

Era mais ou menos seis da tarde, quando Falcão foi solto no quintal. Todas as roupas estavam colhidas, as redes, não havia mais; panos de chão, idem; chinelos, colhidos, mas as plantas... não. Um criadouro de plantas, cujas terras fabricadas " a la Globo Repórter " estava escondidas ao lado do famigerado jardim, ainda estavam lá...

Naquele dia, minha esposa disse, "deixa o Falcão solto um pouco, sem ser vigiado, de repente ele não apronta, porque ele já deve estar acostumado"... E eu, feliz pela ressalva do "acostumado", deixei. Lá no fundo do meu coração bateu-me a esperança de um mundo melhor, de uma raça bendita que perdoa o mal e o direciona para o bem! 

Realmente eu estava ficando feliz ou louco... E o deixei solto.

De repente, um berro "Nãaaaaaaaao!!!"... Com o berro de um leão magoado, preso por um prego na pata, Era o dono do experimento. Nunca o tinha visto daquele jeito. Louco de raiva, queria bater no cachorro, empurrando-o para longe -- Falcão o adorava, até então... -- pegando suas plantas na mandíbula do cão, estraçalhadas, acabadas!

Minha esposa quis intervir em favor do cão, quando foi em vão. O menino, que não sabia nem mesmo porque cuidava das plantas, não sabia nem mesmo se gostava de cães, sem qualquer objetivo definido na vida, ofendeu outra fera... a minha mulher.

Assistindo a tudo, sua fúria, suas palavras mal colocadas de sempre ("é uma desumanidade!", dizia ele, mesmo sabendo que cachorro não era humano...), percebi que sua loucura fora longe demais. E coloquei Falcão para dentro de sua casa, sem bater nele, claro. Após, coloquei expressões do tipo "não adianta plantar se você não respeita as pessoas" -- "Não adianta trabalhar a terra, se você não trabalha a si mesmo" -- "Não se pode ser teórico em educação, se você não respeita ninguém nessas horas".

Acho que fui a fundo demais em minhas palavras, de modo que depois percebi que tudo que falei foi algo "pérolas aos porcos". Ele não entendia nada. Eu devia ter chamado a polícia! Calma, mentira. Eu conhecia a pessoa. No fundo, um garoto perturbado pela carência de pai, mãe, irmãos, amigos, que busca um caminho na religião, em uma educação diferente, em modos práticos quando dele precisamos, mas só.

Esse mesmo garoto, sem futuro com a terra (plantas), já pensara em se matar. Negro de nascença (uma das qualidades desvirtuadas por ele), não consegue lidar com sua cor, com sua inteligência, com seu mundo social, e tenta se socorrer junto a ele mesmo.

E quando o cachorro acabou com suas plantas, chorei um pouco. 



Volto no próximo texto...


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