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Uma mulher. Uma mãe de Verdade. |
"Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento."
C.D. Andrade
“Churrasco com muita farofa é sinal de pouca carne!”
Queria ressaltar um pouco mais sobre minha mãe, terminar falando de uma pessoa valente, destemida, que lutou até o fim de seus dias por nós. Falar um pouco, agora, do que a levou de nós, de sua braveza, de sua valentia, coragem... Enfim, um pouco mais sobre uma senhora que se transformou em uma estrela que nos conduz, todos os dias.
O Início da Teimosia
Minha mãe sempre foi teimosa, desde criança. A teimosia em querer resolver problemas alheios, a de cuidar dos filhos, netos, bisnetos, e não de si mesma; a de cuidar das doenças alheias, de seus filhos ou não. Enfim, sua jornada teve uma esfera maravilhosa, dentro da qual podíamos espreitar de longe, ou de perto, o que ela era realmente: um ser que resolvia tudo.
Entretanto, as leis naturais da vida nos diz que somos ignorantes perante ela; diz que somos crianças felizes brincando em campos minados, nos quais, ao saber que há bombas em algum lugar, acreditamos que nunca uma irá explodir conosco.
“Não corte o pé de uma mula teimosa, você pode precisar dela, meu filho, mais cedo ou mais tarde” – sobre pessoas que de caráter duvidoso...
Minha mãe, ao dar a alma por todos, esqueceu-se de se cuidar, de se amar mais. Um grande exemplo disso era a sua perna esquerda, na qual havia um problema sério (na pele), que exigia dela tantos cuidados quanto o de qualquer pessoa ao seu redor. Ela, disfarçadamente, passava um remédio ali, uma faixa aqui, mas nunca quis tratá-lo com afinco, pois acreditava que iria perder a perna... E o tempo se passou.
Tal problema ficou com ela durante anos, mas se aprofundou após constatar-se que ela tinha principio de diabetes. A luta não tinha sequer começado. Depois de várias andanças em busca da resolução de problemas – burocráticos, ou mesmo uma pequena caminhada valorosa para aquecer os nervos – fez de minha mãe uma pessoa incansável, mas, quando chegamos a uma certa idade, desconhecemos o que nos fez realmente mal no passado, e insistimos em pontos essenciais que nos prejudicaram. Tipo o açúcar em excesso, o sal em excesso, a gordura animal, enfim, tudo que nos fez mal nos fará mais mal ainda numa idade avançada.
Médicos diziam que não poderia comer doce de manga, mangas, bolos; e além de tudo, tinha que desfazer do excesso de sal. Ela tinha uma doença na qual os excessos deterioravam o mais forte humano, se este não tiver o cuidado na juventude ou mesmo na infância. E minha mãe caprichava, às escondidas, em tudo que não podia. Enfim, unindo problemas anteriores com os atuais, a valente senhora iniciou um processo de dor acuado do qual só ela, e mais ninguém, poderia retirar o triste aprendizado.
A Dor da teimosia
Quando estava realmente a vista, sem que pudesse esconder, seus olhos de criança choravam internamente o que a realidade demonstraria mais tarde. Em casamentos, em reuniões, em fins de semana, seus movimentos, que eram céleres comparados aos das minhas irmãs mais novas, começaram a claudicar. Seu astral, que nos conduzia ainda que de longe, pelo respeito, começou a se apagar. Seu respeito, no entanto, crescia à medida de todas as coisas.
Não era o bastante, entretanto, a teimosia continuava. Achava que com remédios alternativos a coisa consertar-se-ia com o tempo; achava que, com o passar, médicos deveriam ser deixados de lado, pois as fórmulas dela estavam dando “certo”.
“Vai cair alguma coisa?”, frase dita todas as vezes que eu me negava a fazer um trabalho considerado de mulher.
Não estavam. Por ficar em evidência tudo que seus olhos tentavam nos esconder, não pôde ficar com suas dores no anonimato, e fomos obrigados a intervir como furadeira no cimento mais forte do mundo. Minha mãe não aceitava ajudas, pois sabia que médicos atuais possuíam métodos modernos que retiravam, a seu ver, o pudor que antes (em sua época) eram tão resguardados. Aqui, soava a tradição arcaica, na qual senhoras da década de cinquenta, ainda hoje, sob grilhões, são levadas a aprender, mas a resistência de minha mãe era maior do que qualquer avenida.
A Divina Palavra
Muitas vezes desistimos. As expressões “glória a Deus” e “vai me libertar de...” eram repetidas milhares de vezes como mentiras que viraram (Há séculos) verdades. Todas as vezes que se colocava o nome Deus na frente de vários de nossos problemas, tudo, para ela, considerava-se resolvido...
A religião, para minha mãe, desde que veio para Brasília, tornou-se uma muralha entre ela e mal do mundo. Era de assustar. Poderia vir até ela o mais sábio dos homens com seu intelecto de Haward, e não adiantava, noutro dia este homem estaria sorrindo pelas palavras fortes e rápidas, e se modificaria com elas. E mais, jamais esquecer-se-ia da senhora simples, sem didática, sem afinidade com as palavras, mas, ao pronunciar Deus, o mundo parava...
Nesse aspecto, eu sempre a invejei. Eu queria muito acreditar em algo que me desse força, firmeza, paz, amor, bondade, de uma maneira que somente tocando no nome desse algo eu ficaria mais forte ainda. Assim era a relação de minha mãe com Deus... E eu a decepcionei.
Depois que comecei a ler livros clássicos, parei em um curso de filosofia que a fez desabar. Adeus ao menino que seria , segundo alguns, o pastor ou mesmo o ancião da família. Ou seja, ela tinha jogado todas as cartas em uma pessoa que lia demais. Esse foi o meu mal (?), diziam ela e meus irmãos.
Não foi não, minha mãe, com minhas convicções, estou sendo forte e um tanto quanto destemido tal foste um dia aqui do meu lado. Com o que tenho acerca dos céus e infernos, posso enfim, mãe, dormir melhor, sem espantos. Mas sei que a senhora dormia melhor do que eu, pois tinha suas convicções mais fortes ainda presas ao seu coração. Eu ainda falho nesse quesito. A senhora era a melhor de todas as mulheres nesse fim.
Minha mãe e eu
Ela tinha um carinho mais forte por mim, não há como negar. Por vir ao mundo muito bem, mas, graças a um pequeno problema chamado caxumba, tive que ficar no hospital por meses, e, segundo alguns, quase me fui. (quase) Morri. (quase) Passei dessa pra melhor. Infelizmente estou aqui. Não fui, mas ficaram resquícios físicos de minha luta. Mas nem tudo é mal, como se diz. A gente só não conhece o lado ‘b’ da moeda.
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“Desde que eu me conheço por gente, eu tomo esse remédio, e nunca morri!” – dizia todas vezes que sentia incomodada quando questionada sobre seus remédios.
Eu, pela grande força que ela me dera durante toda minha vida, a amei e morrerei assim, com esse amor real, que só combina com o amor que tenho por meu filho de quatro anos, o qual nascera feliz e lindo, e graças aos deuses, minha mãe pôde conhecê-lo, amá-lo e dele cuidar um pouco.
Com relação à minha esposa e a amizade com minha mãe, queria um capitulo à parte, mas tentarei, com lágrimas, expor ou melhor descrever:
Eu tinha uma linda e bela namorada, mas não dera certo. Fiquei com ela muito tempo. Todos se acostumaram, mas minha mãe a tomou como filha. Mas tal filha, por ser dedicada demais à mãe (minha), teve que voltar a sua mãe real. Minha família entristeceu, e minha mãe, que aprendeu a amá-la, ficou tão triste que prometeu não amar mais ninguém ou chamar de filha qualquer mulher que eu a apresentasse...
O tempo, no entanto, mostrou-se depósito dos horrores – o que era ruim ficou no passado --, e deu uma nova filha à minha mãe. Após anos contra meu casamento atual, tive a oportunidade de ouvir minha mãe chamar, com toda a sua voz, minha esposa de filha, e mais. Há relatos nos quais, ainda sem a presença daquela, minha mãe teria comentado que ela, minha esposa, ela a melhor nora dela, em meio a algumas que ficaram estáticas quando adoeceu, ao contrário de minha esposa, que, com seu pequeno tamanho, mas de grande determinação, atuou como uma guerreira maravilhosa. Obrigado, amor.
Há episódios e episódios, e preciso me restringir senão...
A Guerra Maior
Mas minha mãe tornou-se um símbolo de guerra. Após a descoberta de um liquido negro na barriga que a fez literalmente parar de vez, acamada, enfim, pediu ajuda. Mas o mal só estava se mostrando em forma de um liquido que a pusera em choque. Nem mesmo o médico sabia o que era, no inicio, tanto que a fez voltar. Mas seu estado já nos fazia nervosos, e sua teimosia – pelo menos o que restava dela – mais ainda.
Após passar uma semana no hospital sob orações paralelas de vários irmãos de sua igreja, minha mãe havia voltado pra casa – foi a última vez. Foi direto para o quarto no qual resido com minha esposa, na casa principal. Lá, esperta, com os olhos atentos, respondia às perguntas de todos. Ao mesmo tempo, recebia cuidados à parte de suas filhas que haviam, até ali, se dedicado, além de minha esposa.
Mesmo assim, não foi o bastante. Uma semana depois, tivera que voltar ao hospital, pois não conseguia ingerir nada. Seu estômago não negociava nada, e expunha a realidade de uma doença que a corroía internamente, e não sabíamos. Ficávamos inertes. Todos os remédios, todas as precauções tinham sido tomadas, mas muito tarde.
“Você é homem, meu filho. Você pode tudo”
A guerreira teve que passar por vários outros exames, e neles constatou o que os deuses até agora haviam resguardado apenas a eles, pois, até hoje, não há solução para essa enfermidade, a qual já levou milhões de seres humanos, bons, maus, lindos, feios, humanos, desumanos, cães, gatos... Tal qual ela mesma. Nada a ela se compara.
O Guerreira se vai
Durante todo processo, ficamos em frangalhos. Não estávamos acreditando. Eu queria processar o médico que nos havia dito, no inicio, que a mãe nada tinha, e a liberou. Mas a família achou que eu estava sendo mal educado. Então fiquei sozinho em meus pensamentos. Minhas irmãs, cada uma sofria mais que a outra – e ainda... – porque não havia mais pensamentos de esperança, apenas um só, aquele que ela nos ensinou, desde a mais tenra idade de cada um de nós... Deus.
Em tudo que fazíamos; em tudo que pensávamos, em tudo que chorávamos, em tudo... Nada mais ficou em nós além dessa palavra que significava perdão pelos nossos erros. Significava muito mais. Tínhamos nela a verdadeira convicção de que minha mãe voltaria e seria aquela mulher forte, brincalhona (até com sua doença rs), amada, que sabia de tudo, cuidar de nós, e nós dela, e iriamos suprir essa falta que já nos fazia há semanas!...
Todos da Vila, até mesmo de igrejas católicas, evangélicas, presbiterianas, etc, na qual existiam pessoas que ela auxiliava ou dava sua palavra divina, rezavam por sua recuperação. Foi lindo, e ao mesmo tempo triste. Acho que faltaram orações...
Depois de duas cirurgias que a deixaram imobilizada, ela teve que passar por uma terceira, a qual, já sabíamos, seria a pior... (desculpe-me...).
Na noite de seu falecimento, eu e minha esposa tínhamos ido fazer compras, e na chegada a nossa casa, antes de subir o degrau que dava acesso à porta principal (morávamos no segundo andar de uma kit net), um telefonema chega à minha esposa, que atende. Minha esposa grita num apelo em vão. Eles queriam informar aos parentes do doente o que havia ocorrido. Minha mãe havia falecido apenas dois meses depois de sua última ida ao hospital.
O Que ficou
As dores, depois de sete meses, ainda burlam nossa alma como forma de lembrar o que aconteceu. Minha mãe tinha um tipo de câncer raro, que, segundo o médico, foi engatilhado em razão de uma emoção que ela poderia ter tido há, no máximo, três anos – o que nos fez pensar na perda de nosso irmão, o primeiro filho de minha mãe, João, que se dera há exatos três anos.
...E é possível, segundo constatei. As emoções também são concretas, pois atingem mentes, corpo, células, hormônios, enfim, desconfiguram as estruturas físicas, biológicas e psíquicas, e minha mãe tinha ido um pouco após a morte de seu filho maior.
Poeira, Batom e Lágrimas
No enterro, fizeram uma grande oração a ela. Seus irmãos de igreja me fizeram, enfim, chorar. Na colocação dos véus – os quais são tradição entre eles, os irmãos – fizeram em minha mente multiplicar, diante de meus olhos, mais de cem mães! E não aguentei.
Semanas depois, nos aparece um convite para participar de um evento em homenagem às cinquenta pioneiras de Brasília, e lá estava minha mãe entre elas. No cartaz, o rosto (que inicia essa homenagem no blog) dizia tudo sobre aquela que, apesar dos pesares, estava sempre sorrindo aos cantos e nos encantando.
No evento, fomos eu e minhas irmãs, mais um irmão. Uma plateia simpática compunha as cadeiras do pequeno auditório de uma livraria conhecida – a Cultura -- no qual se daria um momento inesquecível. Em uma tevê de mais ou menos quarenta polegadas, a aparição de nossa mãe, conversando com uma entrevistadora (realizadora do evento Poeira e Baton) que não poupava perguntas acerca da vida da mãe quando pioneira, nos fez transmutar em lágrimas...
Nossos corações ficaram comprimidos e quase não conseguiram bater de tanta emoção. Foi eterno.
Depois, agradeci a realizadora do evento por tudo que fizera à minha mãe, deixando-a bem à vontade, e aproveitei para dizer que, sem ele, outras mulheres não seriam conhecidas pelo que fizeram pela Capital. Mas, pelo que percebi, minha mãe era a única pessoa mais simples de todas as cinquenta...
Obrigado
Mãe, não temos a audácia de crucificar a senhora por não ter se cuidado, jamais. A senhora já se crucificava por nós, esses marmanjos que chegavam chorando de suas casas, com intuito de levar seus problemas, e de lá sair sorrindo, enquanto a senhora, em sua santidade, chorava por dentro. Nós é que devíamos nos bater, como aqueles loucos que se batem com chicotes nas costas por não entendermos que a senhora é que precisava se abrir. Fomos egoístas, imaturos, infantis, e morreremos sentindo falta da senhora, que sempre nos pôs no colo e nos dava sua surra de palavras. Nós é que devíamos estar no lugar da senhora, pois não merecemos uma pessoa que jamais será esquecida. Enquanto nós... Eu duvido que alguém lembre.
Obrigado, mãe, pelas horas, minutos e segundos de sua vida preocupando-se conosco. Isso é a maior forma de demonstrar um amor sem fim, mesmo àqueles que ainda nem sabe o que é amor materno. Não importa, a professora eterna não reprova seus filhos-alunos nunca, pois vieram de seu útero sagrado.
Aqui, agora, não quero filosofar acerca do céu ou da sua bem-aventurança. Irei chorar mais ainda. Então fiquemos com nossa ignorância, e imaginemos, com toda nossa crença, que um ser como esse que se vai, não morre, vira um ser maravilhoso tanto quanto o foi. Vamos dizer que está vivendo as férias de seus sonhos, sem as reclamações diárias, sem as andações, trepidações, aborrecimentos, enfim, está junto dos mais sábios homens e mulheres, aprendendo e revivendo seus melhores dias aqui, conosco.
“Meu filho, não vai haver nenhuma mãe como a sua mãe.”