Digo isso porque passamos por dificuldades além da conta, e o que se consegue de forma simples, para nós, chega a ser a metáfora da montanha. E se não houver em nós uma filosofia que nos eleve ao patamar de normais, ainda que muitos não vejam assim, estaremos dentro de um mundo no qual tudo se julga, tudo se culpa, e a tudo se condena.
E a mina filosofia, depois muito, é a de um homem que chegou a maturidade e que diz “sim, sou deficiente, porém não sou incapaz”, e “todos somos deficientes em algum nível, seja na personalidade, que induz ao mau-caratismo, seja na perseverança, que nos faz recuar os sonhos; seja na baixa-autoestima, que nos freia nos momentos mais críticos e necessários da vida”, e em muitas, muitas coisas!
Enfim, todos temos uma deficiência, até mesmo de compreensão humana, de humanidade, de amor, de ideais! Somos todos perseguidores de uma perfeição que, para alguns, claro, fica mais fácil encontrar e vivenciar, mas para outros é como se fosse uma jornada no deserto sem direito à sombra alguma.
E é dessa forma que o portador de deficiência vive em seu deserto: em busca de algo que o valorize, que lhe dê atenção ao seu ideais, aos seus sonhos, ao seu mundo que, como o de qualquer um, possui tesouros inimagináveis.
Histórias
A questão, no entanto, é que, como eu disse, pessoas há que lhe trazem de volta o mundo em que pisamos e que sentimos seus espinhos ao acordar. Espinhos em forma de riso, de desdém, de pena, os quais, a depender da vitima, não volta mais a ser o mesmo. O que não é mais o meu caso: eu venci tudo isso, e venço até hoje.
Todavia, histórias nunca deixarão de ser contadas por nós, histórias que nunca haverão de ter ouvintes. Histórias como essa:
Aluguel
Eu e minha linda esposa estamos, mais uma vez, a procura de um aluguel. E geralmente quando isso acontece, temos que nos mostrar pacientes, amigos, com uma gentileza à flor da pele. Isso, talvez, venha a ser uma rosa de plástico na alma ao ser usada em momentos que precisamos, mas que não realizamos com conforto, com carinho, por assim dizer, pelo fato de sempre sorrirmos ao locador, e, por consequências, atos gentis que se sobressaem de forma interesseira, não só da nossa parte, mas principalmente da primeira – do locador. Enfim, o tom de familiaridade, ainda que não sejamos tal, chega ao cimo.
E quando isso acontece, vem-me a necessidade de correr em direção ao nada, pular uma janela, atravessar paredes... Mas, ainda que eu esteja protelando, não é disso que eu gostaria aludir, e sim acerca de um senhor de idade, mas cuja aparência era de um homem forte, cuidado, e ao mesmo tempo sábio... A realidade é que sua sabedoria me soou como se fosse a de um ser que tivesse nascido ontem. Ou seja, a sabedoria, também, era aparente.
Aparente Sabedoria
Entramos em sua casa de dois andares a convite seu e, depois de subir degraus bem estreitos, porém bem feitos, percebemos que o locador do imóvel havia caprichado na divisão, e na gentileza...
Minha esposa andou.. andou... andou e não parava de andar no ambiente que possuía uns 70m2, mais ou menos, o que para nós não seria confortável devido ao numero de coisas que acumulamos no imóvel passado, durante três anos (ainda presente!), como armários, televisões, guarda-roupa... Traduzindo: o que um casal compra no decorrer de sua “formação conjugal”. Eu, paciente, fiquei a espreita da opinião dela, que, como sempre, era o martelo final de tudo, por mais que eu estivesse no chão pedindo, implorando aquele lugar como um novo “ninho”... Êta vida!
Assim que eu me finquei a observar os carros por uma das janelas que davam para a rua principal, o dono do imóvel me seguiu e, como um ser que estivesse ao lado de um E.T (eu), observava-me e aos meus defeitos – braços e pernas magros – andando junto com meu corpo, que quase estava lhe dando um golpe de capoeira ou Krav Magá (!), pelo fato de me fazer um ser de outro planeta...
Mas não foi o seu olhar direto e ignorante que me perseguia que me fez odiar aquela visita, e sim suas perguntas quase sem fundamentos. Já no corredor, ele tinha me perguntado: “o que aconteceu com você?”, como se eu tivesse saído de algum filme de guerra do Espielberg (um Ryan!). Eu, como sempre a essas pessoas que não têm culpa de existir, falei “Foi sarampo, sabe. Não havia vacina na época”. E com o olhar de espanto, o velho balançou sua cabeça concordando.
Conversa vai, conversa vem... E a pior das perguntas estaria por vir, pois estava entalada em sua garganta de assessor de imprensa de Moisés, a pergunta“O senhor trabalha?”... Depois dessa, achei que eu estaria falando com um ser que teria acordado ali, naquele dia, naquele minuto, pois o senhor, cuja sabedoria não havia nem sequer passado por perto, estava diante de um homem (eu) que, apesar de tudo – pernas, braços, físico em geral, com aspectos atrofiados, havia subido aquela escada tão rápido quanto ele, tinha passeado em sua casa antes mesmo que ele percebesse, e ainda questiona o fato de eu trabalhar ou não?!
Não sei qual teria sido a sua intenção, mas causou-me dor e constrangimento. Não sei se sua pergunta era real ou imaginária. Se a sua vontade era de dialogar acerca de meu problema visível, mas... Será que alguém gosta de conversar sobre problemas físicos, emocionais, familiares, particular, sei lá, quando o que está em jogo nada mais é que a moradia e questão?!
Lembranças
Depois do questionador senhor fazer sua parte, passou-me pela memória uma serie de imagens nas quais eu era o protagonista. Entre elas, os dias em que eu corria atrás de ônibus, corria dificultosamente, mas corria nas quadras de educação física – talvez eu, naqueles dias, tinha sido o primeiro deficiente a fazer parte das aulas de Educação Física, em todo território nacional!
Depois, nas imagens, um garoto que tomava chuva, depois de sair da escola, e, por necessidade, tentava subir os morros de lama, tampando os ouvidos ao mesmo tempo por causa de uma chuva forte que na parava de espancar meu corpo magrela, mas que, todos os dias, agradecia por estar junto de meus amigos que nunca me discriminaram por isso.
Ainda nessa escala, lembrei-me dos dias em que briguei com meu melhor amigo por causa de menina, e, na escola, às vezes, ficava na dúvida se dançava ou não quadrilha, ou jogava futebol de salão. Foram dias de aprendizado.
Em tais lembranças, ainda vem o deficiente metido, que fazia parte, de novo, das aulas de educação física do Segundo Grau, e que, um dia, sem querer, entrou no banheiro das mulheres e saiu na base de tapas brandos das meninas mais lindas do colégio.
Lembrei-me dos empregos pelos quais passei, nos quais fui estagiário, vendedor de contratos pela Golden Cross, na qual tive de decorar questionários imensos para enganar muitos prováveis supostos clientes, e outros empregos, como o de operador de caixa, de fiscal de caixa, que andava feito louco a resolver problemas de quebras de caixa!...
Lembrei-me dos dias em que nasci, quando eu era um ser que caminhava normalmente entre os canteiros de meu pai, a buscar borboletas grandes, com as quais eu me fascinava; das plantações de milho, nas quais corria em meio ao milharal, onde havia também feijões plantados e que eu os arrancava fora de hora, e levando bronca de meus pais...
Lembre-me do futebol, e do dia em que cai na linha do “golzinho” e chegavam e me chutavam para dentro do gol com bola e tudo, de tão magro que eu era! E nesse mesmo tear de lembranças, visualizei minha mãe que pedira encarecidamente a Deus para nada me acontecer, pois sabia que eu era diferente dos outros, coisa que ela sempre me lembra e me vence.
E veio o colégio: o ruim é na hora do amor. Sofre-se um “pouco”, mas quem não sofre? E, mesmo assim, apesar das aparências – feio e magrelo e etc --, eu era teimoso. Dava em cima das mais belas, das mais lindas meninas que se sentavam ao meu lado, sendo invejado pelos zés da turma que achavam que eu não tinha capacidade nenhuma para... ah, vocês sabem!
A percepção vem de fora.
Às vezes, quando se tem uma deficiência que se iniciou com cinco ou seis anos, só se percebe que somos deficientes pelos olhares das pessoas que não param de te observar como se fôssemos de outro mundo. Não somos. Humanos somos. Mais que isso, somos idealizadores de sonhos nos quais também somos protagonistas... Somos realizadores de sonhos, somos cientistas, somos filósofos, escritores, somos amantes, amados, somos deuses e não sabemos!
Na última lembrança, a mais bela de todas, e como um sonho me aconteceu, foi a de ter participado de um projeto chamado Leônidas, no qual homens fortes e de caráter me incluíram como forma de me fazer superar, não, muito mais, me fazer ser um pouco melhor como ser humano... Com esses grandes homens, que são meus amigos ternos e eternos, aprendi que somos o tamanho de nossos sonhos, e era verdade.
Meus sonhos se realizam todas as vezes que nesse projeto eu penso. Vem-me a força, a beleza da natureza humana, vêm-me os deuses antigos, a tradição em questão de segundos (!) e me transformam em um deles. Obrigado a todos, em especial ao mestre Vitor Barroso, que está no Rio de Janeiro.
De Volta ao “sábio”
E diante de tudo que me passou pela mente, em segundos, olhei para o velho e disse “não, meu senhor, eu trabalho; sim, sou revisor de um site em um tribunal”... Mas, mesmo assim, a feição do grande filho de Matusalém olhava-me com um espanto enorme, pensando “poxa, ele trabalha!”. E fui embora, pensando nos gênios, nos generais, nos grandes homens, nos heróis de cada época, como se estivessem ali à minha direita, aplaudindo o meu passado e dando-me forças ao meu futuro.
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