sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Carta a Um Guerreiro

O Guerreiro se foi
Depois de tantas lutas em meio a leitos de hospitais há mais de um ano, meu irmão se foi. Vítima de leucemia, uma das piores, conseguiu ser fiel a seus ideais de vida: ser forte, fogo, terra e céu. Elevou sua consciência em todos os instantes, nos dando esperanças de que sairia ileso das dores dos exames que sofria. Sorridente, sempre embalando-nos em suas piadas requintadas, nos fazia chorar e perceber o quanto precisamos ser homens nas horas mais difíceis. E ele foi. Mas se foi.

Seus atos que nos pareciam de um jovem cinquentão, no passado, traduziam o equilíbrio em lidar com uma personalidade que, nas duras horas, respingava atitudes homéricas – assim o diziam seus filhos, de caráteres irrevogáveis e invejáveis.

João de Deus, o Piaba, nascera pobre, assim como seus irmãos, no Rio Grande do Norte, e vieram para a Cidade Esperança em meados de sessenta; primeiro dos oito filhos de dona Josefa e Luiz João “Piaba”, cujo apelido lhe deram por nadar em águas rasas, a das piabas, fora contaminado pelo pai, ficando“João Piaba”. Crescera e vivera em épocas tão melhores quanto a atual, cheio de liberdade, mas, ao fundo, a ditadura militar e seus cacetetes davam pano de fundo à década de setenta – o que não atrapalhara sua escolaridade, seu namoro, suas pequenas brigas... Muito pelo contrário, pegou todas as oportunidades que lhe vieram, e uma delas foi um bico de lavador de carros no estacionamento do Congresso Nacional. Com o tempo, vieram os concursos, os quais fariam parte de uma ancora que, mais tarde, faria de Brasília uma das cidades mais invadidas do Brasil por isso. João não titubeou.

Um concurso na hora certa, no dia certo, na época certa, fez com que João Piaba fosse certeiro. Sem as dificuldades atuais, as provas da Câmara do Deputados se realizaram num domingo, o que fez Piaba levantar-se cedo e percorrer toda Vila Planalto, lugar em que havia se fixado com sua família, a pé, contudo não a ponto de perder a grande oportunidade de sua vida, ou de sua família. Passando nas provas, João galgou, aos poucos, uma vida de bem aventurança.

Antes mesmo, porém, não se pode deixar de falar daquela que foi sua primeira namorada, sua única esposa, sua única mulher. Claudete. Filha de dona Vanda e Clarindo, mineiros da gema. Uma pessoa que nascera frágil tal qual uma rosa, e vivera em função de um homem que sintetizava o espírito dos homens, em compromisso, força, beleza... Sim, João era um ser belo por natureza, e Claudete, como a Vênus que espera seu noivo, nascera para ele, para o meu irmão.

A ditadura não os fez menos amorosos que seus pais. Diziam que o pai dela, por inimizades com o pai dele, era contra a união dos dois; mas só foi isso. Não houve mais percalços. Com pouca idade, quase uma adolescência nos dias de hoje, João casara-se; sua mãe, Josefa, ao saber que o filho pródigo a deixaria depois de anos ajudando em casa, não sabia o que fazer. Restava os outros para segurar a barra.

Anos se passaram e João se mudara para Sobradinho – uma cidade que ficara conhecida pela grandeza do homem que viera a ser. Hoje a cidade se tornou sinônimo de João Piaba – grande, forte e bela.

Outras lembranças virão a nossas mentes, como a do atacante nos campos da Rabelo, do Defelê, atraindo a todos com sua velocidade, agilidade, mas privada por uma dor no joelho, que o fizera parar de correr, mas nunca fora dos campos de Sobradinho. As serras terão saudades suas, as pistas, as pessoas, com as quais João conversava e com elas simpatizava.

Adorava cães. Quando podia, criava uma grande raça. A última fora um Dálmata que tivera que deixá-lo por razões médicas. Piaba não poderia ficar com qualquer animal que soltasse pêlos; e o seu cão teve que ser doado.

O Fluminense, seu time do coração, mais um sinônimo que de João Piaba, será sempre campeão, independente de sua posição na tabela, seja da primeira, segunda ou terceira divisão – o grande torcedor, que criara netos sob o manto tricolor, soube defender com todas as camisas possíveis seu time. No final, apenas um tinha que sobreviver; contudo, um não anula o outro. Muito pelo contrário, os dois se assemelham tanto, que onde um vai estar o outro também vai estar.

Nas conversas, ainda que meio indignado com a política, nos fazia rir com suas colocações meio fora de foco. O relevo que nos dava, no entanto, fora de uma natureza agitada em relação àqueles que a compõem. Havia um certo idealismo em suas palavras ainda que sem o brio da juventude – claro, João não era mais o garoto, nem o rapaz de sempre – todavia fazia questão de lidar com a juventude atual e dar-lhes conselho sobre sua vida, que tanto significou trabalho e dedicação. E fomos todos coadjuvantes de tudo isso.

Aos seus irmãos, mostrou como se constrói uma família. Aos seus irmãos, mostrou como se faz um pai. E mostrou como se faz um irmão.

Nos leitos dos hospitais nos quais fora paciente, João fora um guerreiro, usando de todas as artimanhas físicas e psicológicas, a fim de driblar o seu estado precário; ainda, após sua breve saída deles, tentou fazer o mesmo. Talvez, aí, não sabemos, pela desobediência e desrespeito à própria doença – que em si exigia cuidados – o drible a elas soava já como um adeus aos familiares, sem saber. Assim, nas guerrilhas, nos combates humanos, a que temos obrigações de respeitar até mesmo os inimigos, nosso querido irmão não o fez – deixando a todos órfãos de seu carinho e alegria.

Coisas pairam no ar sobre sua breve ida para o desconhecido. Para onde ele foi, por que foi, se havia tanto para se realizar? Será que realizou tudo? – não, nenhum homem realiza tudo em uma só vida. Talvez esteja aí a resposta: se não temos possibilidades de realizar tudo em uma só vida, que há outras vidas, e nelas tenhamos mais consciências de nossos atos – assim como temos em muitos, mas não muitos. As perguntas sempre nos soarão como racionalismos exacerbados em uma noite de fogueira no frio; ou seja, das próprias perguntas a nós são quase involuntárias, então é certo que para nós, também, as respostas nos soem como mistérios. Não só, mas também tudo que visivelmente não está ao nosso alcance interno.




Nenhum comentário:

Postar um comentário

A Parte que nos Falta

"É ótimo ter dúvidas, mas é muito melhor respondê-las"  A sensação é de que todos te deixaram. Não há mais ninguém ao seu lado....