Viver o mito é possível.
Assim
como se mistura a terra à água da chuva, podemos transformar dois ou mais
elementos em um terceiro que solidifica o homem, e que o deixa acima das
vaidades mundanas. No entanto, transformar tais valores ínfimos em reais é a
nossa sina. Ou melhor, revitalizar nossos objetivos, elevá-los com a
necessidade natural de engrandece-los, e fazê-los de ideal... É o papel do
homem que vive o mito.
Ser forte acima de suas
possibilidades, radicalizando a frialdade de suas emoções hediondas e as
transformando em energias para o dia a dia. Olhando o sol, cerrando os olhos
ante o grande anel que fora deus no passado, trazer à tona sua visão interna
o que realmente foi é e sempre será, respirando os ares do passado, no qual
disciplinas reais e supraeducacionais, regadas de uma tradição além mente,
duelavam com um progresso do qual fazemos parte.
Porém...O progresso, como pando de fundo de interesses
cegos, pode ser também flores negras de um caminho que teimamos dar certo, e
sempre o dará, quando sentimos no peito a necessidade de alcançar nossa parte
oculta, ou, como sempre digo, o morador do terceiro andar, porque nada se
consegue sem luta ou, como diriam os romanos, sem guerra.
Contudo, se as perdermos, há
sempre a máxima que diz “melhor perder com honra, que ganhar sem honra”. E,
como caminhos, essa máxima foi trilhando os dias dos grandes espartanos, dos
persas, egípcios, guerreiros que fizeram parte de momentos tão espirituais
quando qualquer um de nós em qualquer templo atual.
Na realidade, foram homens-mitos.
Dentro deles permeava a certeza – não dúvidas --; permeava o heroísmo, religado
a Heros, a Marte, a Júpiter, na Roma e Grécia antigas, e até Quetzoquatle, o
deus das armas, da guerra, nas culturas ameríndias.
Eram deuses em forma de gente.
Andavam sobre a terra, cultivavam outros deuses, realizavam proezas irrealizáveis
pelos atuais heróis, falavam e contavam histórias imortais, nas quais, eles, os
mitos em forma de homem, eram protagonistas, senão seus pares, ou mesmo seus
ancestrais.
Não eram apenas homens, não. Não
eram. Ainda sim, com simples atos, choravam, amavam, viviam como nós, e
morriam. Tornavam-se estrelas, brilhavam mais que o sol, e na noite, eram
lembrados na grande fogueira dos honrados. A fogueira, tão simbólica quanto à escuridão
– cor do mistério osiriano, clamava mais histórias, mais sorrisos, mais
batalhas no amanhã...
A fogueira, tão alta quanto uma
árvore, adormecia acesa, pois os mensageiros ocultos dos deuses nela se
esquentavam e amavam cada ato dos homens. O sonho ao seu redor era de morrer em
batalhas e descer aos infernos e guerrear junto com Seth, quando no Egito; com
Hades, quando em Roma.
O inferno era o maior dos
mistérios. Se a bem-aventurança existia, pensava o guerreiro, o lado mais místico
e desconhecido do homem seria o lado sombrio, aquele que ele mais temia, ao
passo, caminhava ao encontro dele, somente para desvendar o que mais traria sua
alma, ou, no mais provável, o outro lado
da vida...
O homem-mito guardava em si a paz
dos deuses e a sua guerra. Dormia com a consciência sábia, e acordava um deus.
Suas armaduras, quando havia, eram apenas um traje simbólico, assim como a própria
natureza se resguarda em dar as plantas, pedras, às montanhas, ou mesmo ao céu.
Espadas, fechas, tacapes, sintetizavam nas mãos do homem-mito a guerra imortal
na guerra mortal. Para nós, é algo complexo.
E hoje, em meio aos homens que
rebuscam na história a compreensão desse homem-mito, somos vitoriosos em viver
um pouco desses valores com (e pelos quais) vivemos no passado. Mesmo não
compreendendo o que realmente são, entendemos que existe a necessidade de
sermos, na prática, um pouco deles...
No acordar, no tomar de um banho,
no vestir, no sair da madrugada, no frio que nos recolhe os braços, fúria do
vento que nos bate a alma, na dor da qual não podemos falar, na paz mínima atrás
da porta... O homem-mito se revela. No amadurecer de um caráter, no podar de
uma personalidade, nos atos de consciência quando todos já estão cansados do mundo... No conseguir heroico, mesmo que tenha a
simplicidade lúdica... Enfim, o homem-mito bate à porta do homem de hoje, porém
se transforma em mera ferramenta de uso falho quando esquecido no fundo de
nossos corações.
Viver o mito é possível.
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