quarta-feira, 8 de maio de 2013

Fagulhas de Lembranças (ii): o banho demorado.

"Quando quero tudo, tenho tudo; quando não tenho nada, sou livre" F. Pessoa.


Meu filho: Livre




Nossos pensamentos, para mim, devem sempre ser presos a referencias seguros, no quais possamos ter uma esperança de paz, aqui dentro do coração. Buscar empobrecer nossas almas com pensamentos tolos prejudica nossas mentes, coração, alma... Tudo. Não há como fugir. Para isso há provas de que há mais pessoas em hospitais em razão de seus problemas emocionais (diversos) do que meramente físicos.

Alimentar nosso eu personalístico, travar lutas constantes entre o bem e o mal, saber identificar o mal, afastá-lo, jogar-se em idealismos, em ideais, ser um pouco divino. Essa é a nossa tônica. Tudo depende apenas de nós, desse que lhes fala, daquele para quem falo, não de seres metafísicos, ou esotéricos, como 
Deus e o Diabo...

E quando relembro minha infância, penso apenas em recordações livres de empecilhos cármicos, da violência porque passei, das dores em, um dia, ter me submetido a coisas indizíveis. Poderia, mas não vou...
E para isso, elencarei, em nome de minha mãe, algumas recordações de uma memória que, querendo ou não, estão por se apagar em breve, pois a idade, essa sombra que nos segue, revela, discretamente, que devemos deixar alguns legados escritos, caso contrário não teremos nada mais para nos lembrar, pois tudo, um dia, se apagará...

O Banho Demorado da Infância...

Minha família estava completa. Minha mãe, irmãos e irmãs, todos eles sem filhos, sem filhos com filhos, sem preocupações modernas, como a de celulares, computadores, etc..., tudo era na base do diálogo, pobre, mas enraizado nos mais severos princípios familiares e respeitosos, o que nos dava mais união àquela época.
Eu, um mero coadjuvante em meio a irmãos que só pensavam em ir a bailes com calças boca de sino, não compreendia uma palavra deles – a pureza fazia parte de mim, como uma pétala o fazia para a rosa. Não estava muito para a vida, para as responsabilidades, para nada... Eu tinha uns sete anos de idade...

Idade linda, da qual posso dizer que fora uma das melhores de minha vida, e tenho a certeza de que para muitos também, pois se sofria menos (ou nada) em relação às crianças da mesma idade de hoje, que são obrigadas a voltar para casa às seis da tarde, sentarem frente à TV, jantar assistindo ao desenho favorito, e curtir o celular...

Em minha época, além dos meus vícios, que atualmente se confundem com virtude, eu tinha, intuitivamente, meus deveres, sem que mães ou pais me dissessem o que fazer e onde. Depois, lia um livro, fazia meus deveres de casa, assim que eu chegava do colégio, tomava banho até ficar branco!

E foi nessa época que me ocorreu um algo do qual nunca irei esquecer... De um banho, no quintal de minha casa de madeira. Quintal largo, onde se plantava tudo, colhia-se tudo, e ali estava eu a olhar para o sol, sentado em uma pequena bacia, com água bem geladinha, colocada por minha mãe, tomando meu banho. Aqui, não sei como, tive pensando... foi uma das últimas vezes que me senti tão livre. Eu cantava com minha voz de criança, bem alto, uma canção desconhecida, sujava a água, e um tanto quanto esquelético, sorria para o mundo ao meu redor: todo ele, o meu milharal, meus pés de goiabas, de bananeiras, em um chão de barro que se esticava até o fogão de lenha de minha mãe...

E o tempo passava, e se ía, e ía... enquanto “passavam, eu passarinhava” rs. O mundo desabava, caia em complexidades mil; se arrastava em Vietnãs, em comunismos, em capitalismos frios, em mortes de estudantes, em universidades invadidas... E eu, em meu banho demorado, vivia o melhor dos sistemas,  a paz que tanto buscavam lá fora.

E foram horas e mais horas, quando o sol começou a arder. De repente, minha mãe se lembrou de mim, pegou-me, levou-me ao quarto, trocou-me para o colégio, e entre durezas doces, fez-me ir para a escola que me esperava depois de horas iniciada! Foi belo.

Quando cheguei à escola, com cabeça baixa, entrei na minha humilde sala, lotada, e talvez por isso não me perceberam, de modo que me sentei e, sem professora naquele instante, pude olhar a todos, com sorriso nos lábios, e pegar com eu amigo do lado o que estava sendo dado até minha tímida chegada...

A professora? Para ela, eu era apenas mais um. Já que eu não tinha esse vicio de entrar depois de iniciar a aula, não me falara nada quando me viu. Acho que até me deu um breve sorriso rs.

Aprendizado...

A liberdade que senti era tanta, que até hoje, quando me lembro, sinto minha alma um pouco mais leve.  Talvez porque meus compromissos atuais me façam pesados ao ponto de eu tentar, no passado, por meio de figuras, ações, aventuras sadias, algo que é tão difícil hoje quando encontrar goiaba em pés de manga.

Porém sinto que a pureza que me havia tomado, naquele dia, não era a de outros quando antes era mais consciente. A liberdade seria um ato inconsciente advinda de nossos mais íntimos sentidos? Talvez um ato involuntário, um sentimento sem sentir consciente?... Uma percepção pós-consciência? Não... acredito que não.

Acredito que seja mais uma questão de ser ou não ser, como diria Shakespeare . Se sou um pássaro, tenho minha liberdade apenas dentro que sou, um pássaro, ou dentro do âmbito mais profundo do que temos sobre aves... O que nos faz, com certeza, ser mais introspectos e dizer “da ideia de ave”, como diria Platão. Ou como diria Aristóteles, depende da Fôrma...!

Mas sou humano, e quando mergulho em mim, encontro a pureza inconsciente, involuntariamente, sou livre. Livre das amarras racionalistas acerca do que é ou não é; amarras físicas, emocionais, psicológicas, históricas e prefiro, sem saber, viver em função do que sou.

Hoje, quando tomo meu banho, sinto uma água fria me tomar o corpo, mas à medida que cai ao chão, em segundo, lembro-me de coisas que me preocupam, de pessoas por quem sou responsável, da família que criei, do amor forte que plantei, do aprendizado do dia a dia...

Assim, fica apenas a saudade de uma liberdade que tive, um dia, assemelhando-me ao sol, ao vento e à chuva.

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