terça-feira, 18 de março de 2014

A Visita de Ícaro



Ícaro: o voo nosso de cada dia.




É um assunto que na maioria das vezes atinge quase que cem por cento das pessoas. O excesso. Por que somos tão excessivos em tudo? Por que sempre queremos mais do que podemos ter, ser, suportar, comer, beber, até mesmo amar?

Se quando colocamos sapatos, devemos encontrar um que se adeque a nossos pés. O mesmo a uma luva, a qual, se não for do mesmo tamanho de nossas mãos, ficará folgada ou apertada demais ao uso diário... E assim, teremos que conseguir outra.

Gautama

Sobre isso, temos diversos temas, entre os quais mitos, lendas, contos, nos quais o excesso é sempre diagnosticado como sendo um dos nossos problemas mais difíceis de enfrentar. E um deles, mito, para ilustrar, mais uma vez, é o do mestre Gautama, o menino que fugiu do castelo de seu pai para iniciar-se, ou melhor para entender a vida, a morte, a doença... (não necessariamente nessa ordem!), o que, de algum modo, nos perturba até hoje.

Segundo a Tradição, Sidarta Gautama, debaixo de uma árvore, depois de anos, sem comer ou beber, ouve ao longe um senhor e seu filho em uma barca a comentar sobre as cordas de um alaúde, o qual, naquele dia, estaria desafinado. “Meu filho, não afrouxe as cordas, podem não tocar; e também não as estique muito, podem arrebentar”...

Gautama, após isso, tornou-se iniciado. Passou diversas tentações ao longo do tempo, e se baseando naquela premissa, a de que o excesso é ruim, assim como a sua falta, viu, como os olhos de seu ser, que o Justo Meio seria a forma pela qual todos os humanos deveriam viver. Não somente, mas que, além disso, toda natureza, possuía um equilíbrio natural, um Justo Meio, no qual estaríamos inseridos, contudo sem que percebamos.

A volta de Ícaro

Outro mito, o de Dédalo e Ícaro, que já fora explanado aqui diversas vezes (os mitos nunca são em demasia), com intuito de demonstrar tal Equilíbrio, que, de alguma forma, afeta nossas razões quando nos vem a realidade.

Dédalo, arquiteto do rei de Creta, fora juntamente com seu filo, Ícaro, aprisionado em um grande castelo da cidade. Depois de passarem meses presos, o pai, engenhoso, teve a ideia de construir asas para ele e para o filho, com vistas a sair pela janela do castelo.

E, conseguiram. Suas asas, tão belas, eram de seda. Contudo, como sempre há um ensinamento a ser transferido aos homens pelos mitos, temos a parte que nos interessa, a do jovem, com a chama no coração, que sempre pensa na liberdade como um meio de se livrar dos males humanos, ou da própria vida, de forma extravagante.

O pai, Dédalo, ao vir o filho embriagado de felicidade pela descoberta, que até então lhe era a saída para os seus problemas, disse-lhe... “Não voe alto demais, o sol pode derreter suas asas, e você cair; e não voe muito baixo, suas asas podem molhar no lago!”.

Não escutando o pai, Ícaro voou em direção ao sol como se fosse um pássaro jovem sem experiências, testando o poder das asas. Antes fosse, pois não tivesse acontecido o que todos sabem. Ícaro voou demais, subiu demais, e esqueceu-se do conselho do pai, o qual via seu filho cair em uma queda sem fim, e desaparecer nas águas, simplesmente pelo excesso de confiança.

Mais um.

Citamos, aqui, por diversas vezes, o Banquete de Epiteto, uma metáfora acerca de nossa ganância diária pelas coisas imediatas. Dizia ele, “esperemos como se no banquete fosse; e nos sirvamos quando a hora for a nossa; e quando chegar, sirvamos somente o que nos agrada, nada mais”.

Aqui, o grego sintetiza as duas filosofias anteriores, nas quais tentamos, na vida diária, trabalhar nossa ganância, nossas doenças internas advindas da nossa falta de espera para as coisas mais simples.

Aprendizado

Um dia, um filósofo disse, “se um dia ficarmos tristes, que tenhamos a tristeza das pedras; se um dia tivermos a tensão, que seja a das árvores, dos mares, dos ventos”. Sei o quanto é difícil, pois somos uma mistura de sentimentos voltados ao nosso imediatismo, e nossa tendência é deixar de lado o que mais interessa, nosso espirito, nossa consciência em relação a ele, nossa paz e felicidade a que tanto almejamos desde que descobrimos o quanto necessitamos delas.

Sei o quanto tentamos nos harmonizar com esferas mais intimas de nossa natureza, e não louvamos o trabalho em função disso, porque sempre desistimos. A desistência, no entanto, está em nossos planos, assim como também a volta ao trabalho, à tentativa de conseguir nossos objetivos, pelo mais simples motivo que seja.

E sabemos quanto é necessário caminhar em função de algo que seja maior que nós mesmos, caso contrário estaremos indo na contramão do que somos: humanos! Nas mínimas coisas, nas maiores e nas mais complexas, enfim, até naquelas em que questionamos nossos limites, porém, se sabemos, temos a obrigação de sermos um pouco de Dédalo, entender que existe a necessidade de planar no meio, pois passamos nossas vidas sendo Ícaros, mesmo com o maior dos mestres ao nosso lado...

O aprendizado nos pede para sermos vigilantes, eternos, para impedir essa tendência, ainda que humana, de voar demais e queimar nossas asas. Vamos olhar de longe a nós, e perceber o que Buda percebeu ao longe, ao ouvir o pai e o filho na barca, ao afinar o alude... “não afrouxe as cordas demais, podem não tocar; e também não as estique muito, podem arrebentar”...

O exercício nosso de cada dia deve ser moral. Sem esse treinamento, o excesso nos vem. E em termos práticos já temos ideias do que seja isso, nas compras supérfluas, extravagantes, variadas, em nosso comportamento frente aos amigos, aos irmãos, pais... Mesmo assim, nosso ideal será sempre a estrela no fim da curva.


Vamos olhar ao sol dos mitos, aprender que Alaúdes, Cordas, Asas nada mais são que nós, na tentativa de encontrar a real Felicidade.

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